sábado, 17 de março de 2018

Quaresma: por que cobrir as cruzes e as imagens na igreja?


Não é a idade em si que torna preciosos os costumes litúrgicos, senão sua plenitude de conteúdo e sua força de expressão.
(J.A. Jungmann, Missarum Sollemnia, São Paulo, Paulus, 2009, p. 19)




É um vetusto costume da Igreja cobrir cruzes e imagens. Há mais de cinquenta anos, aproximadamente, era obrigatório, mas, atualmente, é facultativo, como se verá.

O II Concílio de Niceia, realizado no ano de 787, assim falou sobre imagens, entre outras passagens:

Porque, quanto mais frequentemente se olha para as imagens, tanto mais facilmente os que as contemplam se sentem elevados à memória e aspiração dos seus originais. Quanto mais o espectador olhar as imagens de Cristo, de Maria, dos Anjos e dos Santos, tanto mais se recordará daquele que está representado, e se esforçará por imitá-lo, se sentirá convidado a testemunhar por ele respeito e veneração, mas sem lhe prestar, contudo, culto de latria propriamente dito, que só pertence à natureza divina. Assim se faz com a imagem da cruz preciosa e vivificante, com os Evangelhos e com os outros objetos de culto sagrados, honrando-as com a oferenda de incenso e de luzes, como foi costume dos antigos. A veneração prestada a uma imagem dirige-se àquele que ela representa. Quem venera uma imagem, venera a pessoa que nela está representada. (Antologia Litúrgica, Secretariado Nacional de Liturgia, Fátima, Portugal, p. 1441)

Pesquisando, faz-se notar que não há atualmente norma eclesiástica ou rubrica expressa dispondo acerca da prática de cobrir as cruzes e as imagens, com véu roxo, no Tempo da Quaresma e na Semana Santa; nesta se compreende o Tríduo Pascal.

O costume deita raízes para uns desde os primeiros anos do cristianismo antigo e, para outros, em tradição germânica desde o século IX, recolhido pelo Missal Romano composto a partir do Concílio de Trento.

Em verdade, o citado Missal Romano de São Pio V, com as suas edições típicas de 1570-1962, estabelecia a obrigatoriedade  de cobrir com véu as cruzes e imagens, como relata o Secretariado Nacional de Liturgia - SNL (Fátima - Portugal):

No Missal Romano de S. Pio V, terminada a missa do Sábado que precedia o Domingo da Paixão (actual V Domingo da Quaresma), vinha esta rubrica: “Antes das Vésperas, cobrem-se as Cruzes e Imagens que haja na igreja. As Cruzes permanecem cobertas até ao fim da adoração da Cruz, na Sexta-Feira Santa, e as Imagens até ao Hino dos Anjos (Glória a Deus nas Alturas) no Sábado Santo”.

O Missal Romano do beato Paulo VI, com edições típicas de 1969-2002, ao contrário do Missal anterior (o de São Pio V), torna facultativo o cobrir cruzes e imagens, como se lê depois do próprio da Missa do Sábado da 4ª semana imediatamente anterior ao V Domingo da Quaresma (no Brasil, 2ª edição típica, à página 211):

Pode-se conservar o costume de cobrir as cruzes e imagens da igreja, a juízo das Conferências Episcopais. As cruzes permanecerão veladas até o fim da celebração da Paixão do Senhor, na Sexta-feira Santa. As imagens, até o início da Vigília Pascal.

E não para aí. Além de deixar a juízo das Conferências Episcopais, a Instrução Geral do Missal Romano, quer na primeira e segunda edições típicas (n. 278) quer na terceira edição típica (n. 318) inscreve o cuidado que se deve ter para não aumentar excessiva ou exageradamente o número de imagens sagradas. A terceira edição da IGMR (a que está em vigor) estabelece:

As imagens sagradas
318. Pela liturgia da terra a Igreja participa, saboreando-a já, na liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual como peregrina se dirige, onde Cristo está sentado à direita de Deus e onde espera ter parte e comunhão com os Santos, cuja memória venera.
Por isso, de acordo com a antiquíssima tradição da Igreja, exponham-se à veneração dos fiéis, nos edifícios sagrados, imagens do Senhor, da bem-aventurada Virgem Maria e dos Santos, e disponham-se de tal modo que os fiéis sejam levados aos mistérios da fé que aí se celebram.
Tenha-se, por isso, o cuidado de não aumentar exageradamente o seu número e que a sua disposição se faça na ordem devida, de tal modo que não distraiam os fiéis da celebração. Normalmente, não haja na mesma igreja mais do que uma imagem do mesmo Santo. Em geral, no ornamento e disposição da igreja, no que se refere às imagens, procure atender-se à piedade de toda a comunidade e à beleza e dignidade das imagens.

O Secretariado Nacional de Liturgia complementa sua exposição, respondendo:

A grande diferença entre as rubricas dos dois Missais (de Trento e do Vaticano II) consiste no seguinte: no primeiro, cobrir as Cruzes e Imagens era obrigatório (“cobrem-se...”); no segundo deixou de o ser (“pode conservar-se o costume de cobrir...).
Como o nosso consulente pode verificar por si mesmo, consultando o Missal Romano, são-lhe deixadas várias hipóteses: a) pode cobrir as imagens ou não as cobrir; b) se as cobrir, mantém‑nas cobertas desde a tarde do Sábado anterior ao V Domingo da Quaresma, até ao começo da Vigília Pascal (e não até antes do Lava-pés na Missa da Ceia do Senhor, nem tão pouco até Sexta-Feira Santa). A rubrica é clara: “... as imagens permanecem cobertas até ao começo da Vigília Pascal”.

A Congregação para o Culto Divino, por Carta Circular "Paschalis Sollemnitatis" sobre a Preparação e Celebração das Festas Pascais, datada de 16 de janeiro de 1988, reforça a rubrica do Sábado da IV semana da Quaresma (Missal Romano - 2ª edição típica, página 211):

O uso de cobrir as cruzes e as imagens na igreja, desde o V domingo da Quaresma, pode ser conservado segundo a disposição da Conferência Episcopal. As cruzes permanecem cobertas até ao término da celebração da Paixão do Senhor na Sexta-feira Santa; as imagens até ao início da Vigília pascal. (n. 26)

O Código de Direito Canônico (1983) não proíbe. E até mais: mantém os costumes que não contrariem cânones do atual Código (negritos não são do original):

Cân. 5 — §1. Os costumes, quer universais quer particulares, actualmente em vigor contra os preceitos destes cânones que são reprovados pelos próprios cânones deste Código ficam inteiramente suprimidos, e não se permita a sua revivescência; os restantes tenham-se também por suprimidos, a não ser que expressamente se determine outra coisa no Código ou sejam centenários ou imemoriais, os quais podem tolerar-se se, a juízo do Ordinário, segundo as circunstâncias dos lugares e das pessoas, não puderem ser suprimidos.
§ 2. Conservam-se os costumes para além da lei, actualmente em vigor, quer sejam universais quer particulares.

É notório que a Igreja tem tempos ditos fortes, ambos associados à cor roxa: Advento e Quaresma. Aquele sensibilizado pela coroa do advento. A Quaresma tocada pelas cinzas, pelo roxo do véu das cruzes e imagens. Ambos os tempos são de espera e de preparação, com as suas especificidades. A Igreja destaca esse período mediante mensagem papal.

Se a coroa do advento tem seu significado para o tempo em que se prepara e se aguarda a chegada ou a vinda do Senhor, as cinzas, bem assim o cobrimento das cruzes e imagens, com véu roxo, também têm seu significado para o tempo em que se prepara e se aguarda a Páscoa do Senhor (Mistério do Crucificado, Sepultado e Ressuscitado).

Resta saber, na esteira da advertência de Josef Andreas Jungmann, SJ, colocado no preâmbulo, se o costume de cobrir as cruzes e imagens tem conteúdo pleno e capacidade comunicativa de expressão, ou seja, se aquilo que se quer representar (a coisa significada) pelo sinal tem peso, corpo, musculatura que justifique sua admissão no cenário litúrgico e se o sinal (véu roxo cobrindo cruzes e imagens) tem poder de comunicar expressivamente aquilo que se representa (a coisa significada). O cobrimento de cruzes e imagens, com véu roxo, é o sinal, a forma, enquanto a penitência, o recolhimento e o silêncio, a esmola, o jejum e a oração são o conteúdo, aquilo que se representa, a coisa significada.

A IGMR atual e a rubrica do Missal Romano (2ª edição típica) ao adotarem o caráter facultativo quanto ao cobrir cruzes e imagens, admitem, por tal fato, que o sinal tem poder de expressão, de comunicar, aquilo que representa, de revelar a coisa significada.

Como previne Cipriano Vagaggini:

É necessário passar através do sinal para chegar à coisa significada. (O sentido teológico da liturgia, São Paulo, Edições Loyola, 2009, p. 51).

Por derradeiro, não se pode considerar o cobrimento de cruzes e imagens como algo para advertir leigos, para tutelá-los no Tempo da Quaresma. O sinal é obra da Igreja, obra litúrgica, e assume nítido e salutar caráter educativo. É expressão de penitência.

A IGMR, em suas edições típicas, e a já mencionada rubrica do Missal Romano reconhecem oficialmente o costume de cobrir cruzes e imagens na igreja e, em não havendo posicionamento em contrário emitido pela competente autoridade eclesial (Conferência Episcopal), nada impede a continuidade do costume, devendo, porém, observar a seguinte regra: cobrir as cruzes e as imagens na igreja desde a tarde do sábado (17/3) que antecede o V Domingo da Quaresma (que cai no dia 18 de março de 2018); as cruzes ficam cobertas até o término da Celebração da Paixão do Senhor na Sexta-feira Santa (que cairá no dia 30 de março de 2018), enquanto as imagens ficam cobertas até ao início da Vigília Pascal (Sábado Santo, 31 de março de 2018). 

Nota. A Quaresma é o tempo litúrgico que vai de Quarta-Feira de Cinzas inclusive até a Missa Vespertina na Ceia do Senhor (Quinta-Feira Santa) exclusive. De acordo com as Normas Universais do Ano Litúrgico e o Novo Calendário Romano Geral:

O Tríduo Pascal da Paixão e Ressurreição do Senhor começa com a Missa vespertina na Ceia do Senhor, possui o seu centro na Vigília Pascal e encerra-se com as Vésperas do Domingo da Ressurreição (n. 19).

Liturgicamente as cruzes e imagens começam ser cobertas no Tempo da Quaresma (nas Vésperas do V Domingo da Quaresma), mas elas continuam cobertas no curso da Semana Santa, incluso o Tríduo Pascal (as cruzes são desnudadas ao término da Celebração da Paixão na Sexta-Feira Santa e as imagens são desnudadas antes do início da Vigília Pascal, no Sábado Santo)


Leia mais:

Semana Santa e Tríduo Pascal do Ano C - São Lucas (2015-2016)

A cor para cobrir a cruz na Sexta-Feira Santa, por Edward McNamara



Fonte da imagem:
http://barretepreto.blogspot.com.br/2014/04/por-que-cobrimos-os-santos-na-quaresma.html

Nenhum comentário: