
Francisco é o Papa que "arruma a casa" e seu modo de administrar tem a ver com a sua espiritualidade centrada no discernimento de que fala Santo Inácio de Loyola.
Essa espiritualidade inaciana é esclarecida pelo Papa, ao responder a pergunta que lhe foi formulada pelo Direitor da
La Civiltà Cattolica (
O que significa para um jesuíta ser Papa?):
«O discernimento é uma das coisas que Santo Inácio mais trabalhou
interiormente. Para ele, é um instrumento de luta para conhecer melhor o
Senhor e segui-l’O mais de perto. Impressionou-me sempre uma máxima com
que se descreve a visão de Inácio: Non coerceri a maximo, sed contineri a minimo divinum est.
(não estar constrangido pelo máximo, e no entanto, estar inteiramente
contido no mínimo, isso é divino). Reflecti muito sobre esta frase a
propósito do governo, de ser superior: não estarmos restringidos pelo
espaço maior, mas sermos capazes de estar no espaço mais restrito. Esta
virtude do grande e do pequeno é a magnanimidade, que da posição em que
estamos nos faz olhar sempre o horizonte. É fazer as coisas pequenas de
cada dia com o coração grande e aberto a Deus e aos outros. É valorizar
as coisas pequenas no interior de grandes horizontes, os do Reino de
Deus».
«Esta máxima oferece os parâmetros para assumir uma posição
correcta para o discernimento, para escutar as coisas de Deus a partir
do seu “ponto de vista”. Para Santo Inácio, os grandes princípios devem
ser encarnados nas circunstâncias de lugar, de tempo e de pessoas. A seu
modo, João XXIII colocou-se nesta posição de governo quando repetiu a
máxima Omnia videre, multa dissimulare, pauca corrigere, (ver tudo, não dar importância a muito, corrigir pouco) porque mesmo vendo omnia,
a dimensão máxima, preferia agir sobre pauca, sobre uma dimensão
mínima. Podem ter-se grandes projectos e realizá-los, agindo sobre
poucas pequenas coisas. Ou podem usar-se meios fracos que se revelam
mais eficazes do que os fortes, como diz São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios».
«Este
discernimento requer tempo. Muitos, por exemplo, pensam que as mudanças
e as reformas podem acontecer em pouco tempo. Eu creio que será sempre
necessário tempo para lançar as bases de uma mudança verdadeira e
eficaz. E este é o tempo do discernimento. E por vezes o discernimento,
por seu lado, estimula a fazer depressa aquilo que inicialmente se
pensava fazer depois. E foi isto o que também me aconteceu nestes meses.
E o discernimento realiza-se sempre na presença do Senhor, vendo os
sinais, escutando as coisas que acontecem, o sentir das pessoas,
especialmente dos pobres. As minhas escolhas, mesmo aquelas ligadas à
vida quotidiana, como usar um automóvel modesto, estão ligadas a um
discernimento espiritual que responde a uma exigência que nasce das
coisas, das pessoas, da leitura dos sinais dos tempos. O discernimento
no Senhor guia-me no meu modo de governar».
«Pelo contrário,
desconfio das decisões tomadas de modo repentino. Desconfio sempre da
primeira decisão, isto é, da primeira coisa que me vem à cabeça fazer,
se tenho de tomar uma decisão. Em geral, é a decisão errada. Tenho de
esperar, avaliar interiormente, tomando o tempo necessário. A sabedoria
do discernimento resgata a necessária ambiguidade da vida e faz
encontrar os meios mais oportunos, que nem sempre se identificam com
aquilo que parece grande ou forte».

A Igreja tem urgências. E entenda-a nesta expressão de Francisco: "A Igreja é a totalidade do povo de Deus". E o Papa reflete que, antes de teorizar, a Igreja precisa arregaçar as mangas, trabalhando como se fosse um hospital de campanha, acolher, curar feridas, fazer-se próxima das pessoas. Dai a sugestiva figura comparativa dessa urgência:
Um hospital de campanha. Ouçamo-lo:
"A Igreja? Um hospital de campanha...
O Papa Bento XVI, ao anunciar a sua renúncia ao Pontificado, retratou
o mundo de hoje como sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões
de grande relevância para a vida da fé, que requerem vigor, seja do
corpo, seja da alma. Pergunto ao Papa, também à luz daquilo que acabou
de me dizer: «De que é que a Igreja tem maior necessidade neste momento
histórico? São necessárias reformas? Quais são os seus desejos para a
Igreja dos próximos anos? Que Igreja “sonha”?»
O Papa Francisco, tomando o incipit
da minha pergunta, começa por dizer: «O Papa Bento teve um acto de
santidade, de grandeza, de humildade. É um homem de Deus», demonstrando
um grande afecto e uma enorme estima pelo seu predecessor.
«Vejo com
clareza — continua — que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a
capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a
proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma
batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o
açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de
tudo o resto. Curar as feridas, curar as feridas... E é necessário
começar de baixo».
A Igreja por vezes encerrou-se em pequenas coisas,
em pequenos preceitos. O mais importante, no entanto, é o primeiro
anúncio: “Jesus Cristo salvou-te”. E os ministros da Igreja devem ser,
acima de tudo, ministros de misericórdia. O confessor, por exemplo,
corre sempre o risco de ser ou demasiado rigorista ou demasiado laxista.
Nenhum dos dois é misericordioso, porque nenhum dos dois toma
verdadeiramente a seu cargo a pessoa. O rigorista lava as mãos porque
remete-o para o mandamento. O laxista lava as mãos dizendo simplesmente
“isto não é pecado” ou coisas semelhantes. As pessoas têm de ser
acompanhadas, as feridas têm de ser curadas».
«Como estamos a tratar o
povo de Deus? Sonho com uma Igreja Mãe e Pastora. Os ministros da
Igreja devem ser misericordiosos, tomar a seu cargo as pessoas,
acompanhando-as como o bom samaritano que lava, limpa, levanta o seu
próximo. Isto é Evangelho puro. Deus é maior que o pecado. As reformas
organizativas e estruturais são secundárias, isto é, vêm depois. A
primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem
ser capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com
elas, de saber dialogar e mesmo de descer às suas noites, na sua
escuridão, sem perder-se. O povo de Deus quer pastores e não
funcionários ou clérigos de Estado. Os bispos, em particular, devem ser
capazes de suportar com paciência os passos de Deus no seu povo, de tal
modo que ninguém fique para trás, mas também para acompanhar o rebanho
que tem o faro para encontrar novos caminhos».
«Em vez de ser apenas
uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas abertas, procuramos
mesmo ser uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de
si mesma e ir ao encontro de quem não a frequenta, de quem a abandonou
ou lhe é indiferente. Quem a abandonou fê-lo, por vezes, por razões que,
se forem bem compreendidas e avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é
necessário audácia, coragem».
Reflicto naquilo que o Papa está a
dizer e refiro o facto que existem cristãos que vivem em situações não
regulares para a Igreja ou, de qualquer modo, em situações complexas,
cristãos que, de um modo ou de outro, vivem feridas abertas. Penso nos
divorciados recasados, casais homossexuais, outras situações difíceis.
Como fazer uma pastoral missionária nestes casos? Em que insistir? O
Papa faz sinal de ter compreendido o que pretendo dizer e responde.
«Devemos
anunciar o Evangelho em todos os caminhos, pregando a boa nova do Reino
e curando, também com a nossa pregação, todo o tipo de doença e de
ferida. Em Buenos Aires recebia cartas de pessoas homossexuais, que são
“feridos sociais”, porque me dizem que sentem como a Igreja sempre os
condenou. Mas a Igreja não quer fazer isto. Durante o voo de regresso do
Rio de Janeiro disse que se uma pessoa homossexual é de boa vontade e
está à procura de Deus, eu não sou ninguém para julgá-la. Dizendo isso,
eu disse aquilo que diz o Catecismo. A religião tem o direito
de exprimir a própria opinião para serviço das pessoas, mas Deus, na
criação, tornou-nos livres: a ingerência espiritual na vida pessoal não é
possível. Uma vez uma pessoa, de modo provocatório, perguntou-me se
aprovava a homossexualidade. Eu, então, respondi-lhe com uma outra
pergunta: “Diz-me: Deus, quando olha para uma pessoa homossexual, aprova
a sua existência com afecto ou rejeita-a, condenando-a?” É necessário
sempre considerar a pessoa. Aqui entramos no mistério do homem. Na vida,
Deus acompanha as pessoas e nós devemos acompanhá-las a partir da sua
condição. É preciso acompanhar com misericórdia. Quando isto acontece, o
Espírito Santo inspira o sacerdote a dizer a coisa mais apropriada».
«Esta
é também a grandeza da confissão: o facto de avaliar caso a caso e de
poder discernir qual é a melhor coisa a fazer por uma pessoa que procura
Deus e a sua graça. O confessionário não é uma sala de tortura, mas
lugar de misericórdia, no qual o Senhor nos estimula a fazer o melhor
que pudermos. Penso também na situação de uma mulher que carregou
consigo um matrimónio fracassado, no qual chegou a abortar. Depois esta
mulher voltou a casar e agora está serena, com cinco filhos. O aborto
pesa-lhe muito e está sinceramente arrependida. Gostaria de avançar na
vida cristã. O que faz o confessor?»
«Não podemos insistir somente
sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e uso dos
métodos contraceptivos. Isto não é possível. Eu não falei muito destas
coisas e censuraram-me por isso. Mas quando se fala disto, é necessário
falar num contexto. De resto, o parecer da Igreja é conhecido e eu sou
filho da Igreja, mas não é necessário falar disso continuamente».
«Os
ensinamentos, tanto dogmáticos como morais, não são todos equivalentes.
Uma pastoral missionária não está obcecada pela transmissão
desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas a impor
insistentemente. O anúncio de carácter missionário concentra-se no
essencial, no necessário, que é também aquilo que mais apaixona e atrai,
aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús. Devemos,
pois, encontrar um novo equilíbrio; de outro modo, mesmo o edifício
moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de
perder a frescura e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve
ser mais simples, profunda, irradiante. É desta proposta que vêm depois
as consequências morais».
«Digo isto também pensando na pregação e
nos conteúdos da nossa pregação. Uma bela homilia, uma verdadeira
homilia, deve começar com o primeiro anúncio, com o anúncio da salvação.
Não há nada de mais sólido, profundo e seguro do que este anúncio.
Depois deve fazer-se uma catequese. Assim, pode tirar-se também uma
consequência moral. Mas o anúncio do amor salvífico de Deus precede a
obrigação moral e religiosa. Hoje, por vezes, parece que prevalece a
ordem inversa. A homilia é a pedra de comparação para calibrar a
proximidade e a capacidade de encontro de um pastor com o seu povo,
porque quem prega deve reconhecer o coração da sua comunidade para
procurar onde está vivo e ardente o desejo de Deus. A mensagem
evangélica não pode limitar-se, portanto, apenas a alguns dos seus
aspectos, que, mesmo importantes, sozinhos não manifestam o coração do
ensinamento de Jesus.»"

Mais adiante, ao ser perguntado sobre
Dicastérios romanos,
sinodalidade,
ecumenismo, o Papa Francisco tratou do papel da mulher na Igreja:
"E o papel da mulher na Igreja? O Papa referiu-se a este tema em
várias ocasiões. Numa entrevista tinha afirmado que a presença feminina
na Igreja não emergiu mais, porque a tentação do machismo não deixou
espaço para tornar visível o papel que compete às mulheres na
comunidade. Retomou a questão durante a viagem de regresso do Rio de
Janeiro, afirmando que ainda não foi feita uma teologia profunda da
mulher. Então, pergunto: «Qual deve ser o papel da mulher na Igreja?
Como fazer para torná-lo hoje mais visível?»
«É necessário ampliar os
espaços de uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Temo a
solução do “machismo de saias”, porque, na verdade, a mulher tem uma
estrutura diferente do homem. E, pelo contrário, os argumentos que oiço
sobre o papel da mulher são muitas vezes inspirados precisamente numa
ideologia machista. As mulheres têm vindo a colocar perguntas profundas
que devem ser tratadas. A Igreja não pode ser ela própria sem a mulher e
o seu papel. A mulher, para Igreja, é imprescindível. Maria, uma
mulher, é mais importante que os bispos. Digo isto, porque não se deve
confundir a função com a dignidade. É necessário, pois, aprofundar
melhor a figura da mulher na Igreja. É preciso trabalhar mais para fazer
uma teologia profunda da mulher. Só realizando esta etapa se poderá
reflectir melhor sobre a função da mulher no interior da Igreja. O génio
feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões
importantes. O desafio hoje é exactamente esse: reflectir sobre o lugar
específico da mulher, precisamente também onde se exerce a autoridade
nos vários âmbitos da Igreja.""
Por fim, você poderá ler toda a entrevista do Papa Francisco, em português, na
Revista Brotéria ou
aqui (
L'Osservatore Romano, edição semanal em português,
Ano XLIV, n. 39, Domingo, 29 de setembro de
2013).
Fonte do texto:
http://www.broteria.pt/component/content/article/101-entrevista-exclusiva-do-papa-francisco-as-revistas-dos-jesuitas?showall=1
Fonte da primeira imagem:
http://www.broteria.pt/outras-revistas/101-entrevista-exclusiva-do-papa-francisco-as-revistas-dos-jesuitas
Fonte da segunda imagem:
http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL374834-5606,00-HOSPITAIS+DE+CAMPANHA+VAO+FUNCIONAR+HORAS+POR+DIA.html
Fonte da terceira imagem:
http://paroquiasaoconradorj.blogspot.com.br/2013/08/dra-zilda-arns-podera-ser-beatificada.html