terça-feira, 5 de junho de 2007

Da missa assistida à missa celebrada - parte 1 de 2

Fazei isto em minha memória (1Cor 11, 24-25)


Recordo-me que meu professor de português, lá pela década de 50 do século passado, ao dar exemplo de verbo transitivo de dupla regência mencionava o verbo "assistir". Para a regência direta (transitivo direto): "o médico assiste o doente", isto é, o médico socorre o paciente; o médico age. Para a regência indireta (transitivo indireto): "você assiste à missa" (ou eu assisto à missa), isto é, está presente ao ato litúrgico; não age.

Os exemplos - muito compreensíveis para a época - objetivavam demonstrar que num exemplo, quando o objeto é direto, o sujeito da frase tem um comportamento ativo, participa da ação. N'outro, quanto o objeto é indireto, o sujeito da frase tem um comportamento meramente passivo, de nada participa, apenas vê.

Com esse ilustrativo exemplo, pretendo falar de uma mudança: de sujeito passivo para sujeito ativo da missa.

A figura abaixo, que ilustra o texto, dá uma visão da missa dita pelo padre, e assistida pelo povo, que era modelo celebrativo anterior à implementação da Sacrosanctum Concilium, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965).

1. Antes, porém, uma sucinta abordagem sobre a fração do pão, ou ceia do Senhor, no alvorecer do cristianismo.

Os cristãos se reuniam para celebrar a ceia instituída por Cristo, dela participando comunitária e ativamente. E tão comunitários eram que procuravam ter tudo em comum.

O povo reunido, juntamente com o pastor que a presidia, era verdadeiramente o ator da celebração. E os cristãos tinham consciência de ser um povo sacerdotal (povo escolhido e mediador entre Deus e o mundo) numa comunidade toda ministerial, isto é, serviçal segundo o carisma ou dom de cada um.

Os cristãos celebravam e viviam o memorial da Paixão, Morte e Ressurreição do Cristo. Cristo era a centralidade da celebração.

O valor e a dignidade dada à ceia do Senhor levaram os primeiros cristãos a se reunirem festivamente para celebrá-la no próprio dia da ressurreição do Senhor, denominado Domingo. O ato de reunir-se no domingo significava celebrar a eucaristia, tão vital para os primeiros cristãos.

Os cristãos de Abitinas (que ficava na África proconsular – província do Império Romano, correspondendo hoje ao norte da Tunísia e à costa mediterrânica da Líbia), no ano 304, foram martirizados pelo fato de se reunirem para celebrarem o dominicum. Dizia um deles (Emérito) ao procônsul romano ao ser interrogado: “Não podia [proibi-los de se reunirem], porque não podemos viver sem o dominicum...” (Actas dos Mártires in Antologia Litúrgica, Fátima, Secretariado Nacional de Liturgia, org. José de Leão Cordeiro, págs. 580-583).

A vida era modelada pela eucaristia celebrada – eucaristia vivida. A palavra celebrada era penetrante na vida dos cristãos. Escritas no coração, e não numa Bíblia muitas vezes fechada, elas também modelavam a vida dos cristãos – palavra vivida. Dizia outro deles (Ampélio) ao mesmo procônsul romano ao ser interrogado: “Sim, reuni-me com os meus irmãos, celebrei o dominicum e tenho comigo as Escrituras, mas escritas no meu coração. Dou-Te graças, Cristo. Escuta-me, Cristo” (ob. cit.).

“Fazei isto em minha memória” era não apenas uma fórmula eucarística, mas também uma fórmula de vida.

2. Entretanto: “No segundo milênio da era cristã (por influência remota dos povos franco-germânicos, a partir do século IX, e pelo posterior centralismo romano) aconteceu um impressionante deslocamento de eixo na compreensão e vivência da Liturgia.” (Frei José Ariovaldo da Silva, OFM, Sacrosanctum Concilium e reforma litúrgica pós-conciliar no Brasil, in A Sagrada Liturgia 40 anos depois, da coleção “Estudos da CNBB” nº 87, Paulus, 2003, pág. 36). E o articulista esclarece esse deslocamento de eixo: “A centralidade da Liturgia como celebração do mistério pascal cedeu lugar às devoções (devoção aos santos e ao Santíssimo Sacramento). As devoções passaram a ocupar o lugar central” (ob. cit., pág. 37).

Segue-se que a assembléia deixou de ser celebrante. E o padre assumiu o papel de único celebrante. A missa passou a ser coisa do padre, nele estava centrada a liturgia. A estrutura da Igreja favoreceu isso: altar bem mais elevado e distante do povo. E o padre, de costas voltadas para o povo, rezava a missa na língua litúrgica – o latim. A palavra não era mais proclamada, mas apenas lida pelo padre para si mesmo, em voz baixa. O próprio padre tornara-se refém do ritualismo: qualquer deslize nas palavras e nos herméticos gestos podia afetar a eficácia do ato.

Com o suceder dos tempos, o latim deixou de ser a língua comumente falada, cedendo lugar as suas variantes hoje conhecidas (italiano, castelhano, português...). Mas a liturgia da missa continuou sendo em latim.

Diante dessa mutação do latim, como não foi feita a formação do povo para a língua litúrgica, o povo foi deixando de compreender as palavras pronunciadas na missa. Não obstante, o povo continuou tendo por ela forte atração devocional. E o povo acrescentava outras devoções no curso da missa, em particular, a reza individual do terço.

Para o povo a consagração, ou melhor, a elevação da hóstia grande, passou a ser o momento privilegiado da missa. Esse momento era assinalado pelo toque da campainha. O padre, como se disse, de costas voltadas para o povo, elevava a hóstia grande bem acima de sua cabeça, para que pudesse ser vista. Para o povo essa era a centralidade da missa: ver e adorar a hóstia consagrada.

Em resumo. O mistério pascal celebrado deixa de ser a fonte da espiritualidade. Cede lugar para as devoções populares. A eucaristia não é mais uma festa, onde todos celebram.

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